Marta Vidal

CERCHI NELL’ACQUA (DEZ 2018)

Em Março de 2016, Hasan Aldewachi, um cientista iraquiano, foi expulso de um voo Easyjet porque a mensagem que estava a escrever no telemóvel em árabe foi vista como suspeita por outros passageiros e denunciada à polícia. Em Outubro do mesmo ano, Khairuldeen Makhzoomi foi obrigado a sair de um avião da Southeast Airlines e questionado durante horas por ter falado ao telefone em árabe e ter terminado a chamada com a expressão insh’Allah.

Se os passageiros que partilhavam o voo com Hasan e Khairuldeen percebessem árabe, saberiam que a mensagem que um escreveu avisava a família que o voo ia atrasado, e que insh’Allah, “se deus quiser” em português, é uma das expressões mais comuns no árabe, usada tanto por muçulmanos como por cristãos para mostrar esperança. Mas a língua do outro, apesar de completamente desconhecida, foi imediatamente interpretada como uma ameaça e denunciada como perigosa. Hasan e Kairuldeen foram escoltados pela polícia para fora do avião e questionados, suspeitos de crime apenas por falarem árabe.

O que faz com que uma língua desconhecida seja tão prontamente associada a perigo e violência? O que torna o árabe numa língua reduzida a estereótipos e preconceitos, como se fosse apenas falada por terroristas prontos a explodir um avião?

Antes de começar a aprender árabe sentia-me fascinada pelos traços desconhecidos do alfabeto, que me pareciam tão belos, tornados numa arte aperfeiçoada durante tantos séculos. A elegância da caligrafia árabe cativava-me de uma forma que achava difícil de explicar. O árabe era a língua dos incríveis contos das Mil e uma Noites, da belíssima poesia de Mahmoud Darwish e das canções de Umm Kulthum que me enchiam os ouvidos de uma melancolia doce, e que apesar de ininteligível me lembrava o fado. Quando comecei a aprender o alfabeto árabe, os traços que antes eram uma incógnita começaram a fazer sentido, e eu senti o entusiasmo de quem desvenda um enigma, e de quem descobre um novo e fascinante mundo linguístico. Descobri não só a perfeição, o desafio e o nível de abstração da gramática árabe, como a beleza de algumas palavras e expressões, e a surpresa de encontrar algumas palavras em comum no português.

Lentamente, comecei a aprender algumas das particularidades da língua e a forma como é vivida no mundo árabe. Aprendi que no árabe há várias palavras para o verbo “amar”, dependendo da intensidade do sentimento, e que se diz “enterra-me” (يقبرني) , quando se ama tanto uma pessoa que não se suportaria viver mais tempo do que ela.

Fui recebida em vários países, habibti  “minha querida” (حبيبتي) de Marrocos ao Líbano, sempre com uma hospitalidade enternecedora. Fui “bem-vinda aos meus olhos”, (أهلا و سهلا في عيوني) e fui “luz” (نورتي). Uma mulher síria, refugiada na Turquia e a viver num apartamento minúsculo, deu-me as boas vindas dizendo que se não coubesse na sala podia deitar-me nos seus olhos.

Amigos de Alepo ensinaram-me a  perguntar “qual é a tua cor?” (شلونك) como quem pergunta como estás, e eu descobri que a minha cor é “como a tua cor” (مثل لونك).

Aprender árabe é também aprender a abençoar a mão do outro
(يسلمايدك) como quem diz obrigada, e que quando tenho fome “os pardais dentro da minha barriga estão a chilrear” (عصافير بطني تزقزق).

É aprender que o que é dito com ênfase é multiplicado por mil, seja mil vezes obrigado, mil vezes de nada ou mil vezes bem-vinda.

Mas o árabe não é só doçura e hospitalidade, e é claro também aprender os palavrões. É saber dizer que “uma vagina te engula” (كس يبلعك) ao idiota que te está a irritar, e perceber os insultos que te está a gritar o taxista que te tentou aldrabar para poderes responder à altura, como chamar-lhe “cão”
(يا كلب) ou “ filho de um sapato” (ابن الجزمة). Fui também aprendendo as imensas variações locais, e que as expressões usadas num país ou região podem ser recebidas com perplexidade noutros sítios. Na Tunísia, por exemplo, não se agradece tanto com o “obrigado” (شكرا)  do árabe padrão, mas com a expressão “a tua vida” (عيشك). As diferenças entre o árabe moderno padrão, usado na escrita e em discursos formais, e o árabe falado são imensas, assim como as variações regionais que tornam aprender árabe um desafio ainda maior.

Mas uma das maiores surpresas foi descobrir que o árabe está mais próximo do que parece. Quando comecei a enumerar as palavras portuguesas de origem árabe: azeite, açúcar, tâmara, açafrão, alface, alecrim, alfarroba, limão (…) um amigo palestiniano brincou que já sabia que se visitasse Portugal não passaria fome, com tantos nomes de frutas e vegetais em comum. E eu respondi: oxalá que venhas. Insh’Allah, essa expressão tão comum no árabe, que pronunciada por Khairuldeen Makhzoomi num voo foi suficiente para levantar suspeitas de terrorismo, foi adoptada no português e no espanhol, oxalá e ojalá, para expressar esperança, deus queira, espero que sim. E enquanto partilhamos a esperança, a língua do outro torna-se menos estranha, mais próxima, mais nossa.

Há alguns anos atrás, em viagem pelo norte de Marrocos, passei pela pequena cidade de Arzila, que os portugueses ocuparam entre o século XV e XVI. Mariam, uma mulher local que se tornou minha amiga, guiou-me pela pequena cidade lavada de branco com portas e janelas azuis viradas para o mar, e mostrou-me a fortaleza da cidade construída por portugueses durante a ocupação. Apesar da presença portuguesa não ser de todo um motivo de orgulho, com o livro mais recente da escritora marroquina Laila Lalami, “Memórias de um Escravo”, a descrever alguns dos episódios da violência do colonialismo português e do tráfico de escravos no norte de África, Mariam disse-me que os meus antepassados estavam ali, naquela muralha, naquela cidade branca e azul, e que os antepassados dela estavam em Portugal, onde há ainda tantos vestígios da presença árabe. Tocámos a muralha com a palma das nossas mãos e sorrimos uma para a outra. Nesse momento eu deixei de saber onde acaba o “nós” e onde começa o “outro”. Não acho que seja importante. No fundo, só há um “nós”, e eu posso fazer a língua do outro minha também.

Publicado na revista literária cerchi nell’acqua.
Traduzido para o italiano por Pierluigi Manchia
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